Beatriz Calanda é a grande senhora do jet set madrileno. Parece que toda a gente a conhece, as revistas cor-de-rosa e os noticiários em permanência mostram-na num pleno glamour, com um sorriso sempre esplendente, afirma a quem a vê ou lê que a sua vida é um livro aberto. Mas, na verdade, nem sequer os maridos e muito menos as filhas, ninguém sabe quem ela é na realidade, é este o segredo que Carmen Posadas vai dissecar no seu poderoso romance A Mestra de Marionetas, Casa das Letras, Leya, 2020.

A autora uruguaia de origem, escritora de renome internacional, uma das figuras incontornáveis da literatura latino-americana, consegue nesta obra de uma carpintaria aparentemente simples, entrelaçando tempos, genealogias, agarrando desde a primeira página o leitor para um putativo enigma, um segredo bem guardado, um retrato esplêndido da Espanha franquista até perto dos tempos de hoje: impecável na fidelidade de usos e costumes, dá-nos um retrato altamente pedagógico para as mais novas gerações; serve-se da história de uma família boliviana contemplada pelos bons ventos da riqueza, que se transplanta em Madrid com filha adotada, é ponto de partida para que a paleta nos revele as classes possidentes, os seus pontos de encontro, os seus recreios, as suas quimeras; o destino desta filha adotiva corre transversal àquela sobrinha que veio de Londres, de ambiente humilde, um tanto recambiada, de amores com um gigolô serôdio; Beatriz Calanda vai tomando conta do palco, ganhou forma, entra com gosto na alta roda; Ina, a filha dos ricaços Peréz, vive enfastiada naquele ambiente, reza o destino que se encha de amores por um revolucionário, ela que tinha um noivado tão promissor, conhecia de olhos fechados aquele centro de Madrid para onde convergia a fina flor dos filhos do franquismo.

E vamos prosseguir nesse itinerário de quatro casamentos da figura proeminente da socialite espanhola, andaremos aos ziguezagues, logo o aparatoso desastre que deixa, pensava-se, tetraplégico o quarto marido, acende-se a luz do ciúme, anda lá por casa, em inusitada regularidade, um médico amadurecido também rendido de amores por Beatriz, dá sempre uma imagem exterior do seu dogma de fé, a família em primeiro lugar, o amor daquelas quatro filhas, a quem ela se sente unida como um cacho, Beatriz é incansável para que a família se reúna no Natal, a mais velha das filhas vem do Canadá, com os meninos pequenos que hão de sujar móveis, a secretária de Beatriz, Lita, uma lenda da família, há mais de 25 anos que ela funciona como uma eminência parda, uma organizadora da agenda da dama mais requestada, desde passagens de modelos aos bailes de beneficência.

Nos momentos exatos, têm o condão de espevitar o leitor para o desfecho final, desvelam-se segredos e maquinações, pisa-se o terreno sólido como os maridos são jogados fora. É a própria Beatriz quem diz quando se prepara para fazer um ensaio autobiográfico: “A verdade não existe, a verdade fabrica-se”. E este romance é pujante de uma vida encenada, no termo da obra descobriremos quem por detrás da ascensão triunfal de Beatriz Calanda é uma verdadeira mestra de marionetas. Esplendorosa e sem idade, assistida por tratamentos e toda a sorte de táticas anti idade, cada entrevista ou aparecimento público é de uma fulgurante teatralidade. Aquela mulher nunca fala nem dos pais nem dos avós, nem de onde veio, se tem ou não tem irmãos, e quer sempre a sua família unida, quando o seu quarto marido fica inválido, ela adequa a narrativa ao que a sua enorme audiência reclama: que enfrenta este novo e incerto capítulo da sua vida com muita força, a princípio julgara-se que ele fosse morrer, agora, as infinitas dificuldades que há que ultrapassar são quase indiferentes; “tudo me parece uma dádiva comparado com a possibilidade de o perder”.

Cruzam-se as vidas dos Peréz, com longínqua família de Londres, a filha mais nova de Beatriz Calanda de nome Gadea procura vasculhar os álbuns zelosamente guardados que levaram ao percurso triunfal da mãe, descobre o segredo que existe no computador de Lita, como todo o passado de Beatriz está na penumbra, a partir do momento em que pode embaciar o que de Beatriz se quer, a imagem de ternura, de firmeza e de amor familiar que ela transmite.

Há outro grande poder de carpintaria de toda esta organização do livro, há inúmeros solilóquios, ou quase, toda a obra é segmentada por alguém que intervém e nós mergulhamos numa história quase contada em confidência até saltarmos para outra, e de há muito sabendo só ao fim de mais de quinhentas páginas é que a verdade se apresentará nua e crua. Alguém anda a escrever a verdadeira vida de Beatriz Calanda, para além da própria Beatriz. Perpassam mistérios, medos de envenenamentos. Dá-se uma reviravolta, um anónimo manda informação sobre o que foi a verdadeira vida de Beatriz Calanda, existia uma biografia não autorizada. Os fãs incondicionados da socialite andam preocupados com o estado de espírito da sua estrela maior, ela desmente os dados dessa biografia não autorizada, que a família está triste com tanta mesquinhez e atoarda, que as filhas lhe estão muito unidas, o entrevistador espicaça-a, uma das suas filhas tinha-se casado com uma mulher, pergunta-lhe se está incomodada, a grande estrela da socialite tem resposta pronta, fora ela que as apoiara incondicionalmente, e está feliz com a felicidade da filha. Fora notícia que Beatriz anda embeiçada por um dos homens mais ricos da Europa, ela nega veementemente quando em solilóquio nos era dado pressentir que seria o marido seguinte. E o notável romance termina em forma de entrevista, não deixa fazer pairar no ar que algo ainda se pode vir a passar na vida dessa mulher sem idade: “Quem estranharia que ela estivesse a preparar um novo triplo salto mortal para outro grande amor, como aqueles a que nos habituou? E ainda há outra incógnita apaixonante: será verdade o que dizem essas memórias escandalosas de que Lita era, mais do que a sua fiel assistente, quem tratava de mexer os cordelinhos, de abrir os caminhos da sua senhora? Se assim era, o que acontecerá agora que ela já cá não está? Qual será o próximo capítulo na vida amorosa de Beatriz Calanda? Admitem-se apostas”.

Um tratamento espantoso, uma água-forte da Espanha franquista, da Madrid da Transição, à modernidade. Um ensaio monumental sobre as verdades e as mentiras, a realidade e a fantasia.